domingo, maio 14, 2006

Escutamos o Porto

«Escutamos o Porto: os passos dados sobre as lajes; vozes soltas, feridas; falas num português perdido. Descemos da Sé para a Ribeira. Essas mulheres que gritam estão vivendo entre pedras ainda. Caminhamos no lixo. Vamos atentos à solidão das pedras, à forma destas casas que deveriam estar apodrecidas. A redução da luz conserva as suas tintas, embora mortas, vivas. Cores indecifráveis, vermelhos espessos, obscurecidos. Amparam cheiros fétidos, penumbras. E o rio resume tudo isto: mulheres lavam na água destruída: roupa, sabão e cascas de laranja; em torno, a água grande, verde e íntima. Água estreita, granito, como a Vila. Na Rua de Cimo de Vila começamos o caminho de Domingos Peres das Eiras. É esse o nome, o verdadeiro nome de Eugénio de Andrade? Que nos conduz na sordidez e no esplendor da Vila. Tu duca, tu segnore, e tu maestro. Sem culto, a Igreja de São Francisco é uma gruta de talha onde se deslocam aves, as mesmas que Eugénio de Andrade vê junto ao cais, sobre barcaças negras. Depois, aquele muro branco, dele e de José Rodrigues, diverso dos muros brancos do Sul, escuro, parede de uma rua onde vozes de crianças - tão exteriores ou interiores a nós, que são repentinamente as de William Blake - jogam. E ao teu encontro vem a grande ponte sobre o rio. É de noite, de facto, mas não estás só. O frio sobe do Douro, a cidade expõe as suas luzes. Escutamo-nos.»

(Gastão Cruz, in "O Poeta e a Cidade")